Geografando

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Desequilíbrios estruturais do capitalismo actual


Emir Sader, 11 de Setembro de 2008

A actual crise económico-financeira internacional insere-se no marco de um ciclo longo recessivo, do qual o capitalismo não logrou sair desde o seu início, em meados da década de setenta do século passado. Sem essa inserção, fica difícil a apreensão do carácter dessa crise, das consequências que pode produzir e do cenário que deve surgir depois dela.

Os ciclos e as crises

O capitalismo vive, pela própria natureza do seu processo de reprodução, articulado por ciclos, curtos e longos. Estes coordenam os ciclos curtos, numa perspectiva expansiva, se a curva das subidas e descidas das oscilações curtas apontam para cima, recessiva, se para baixo, conforme a teoria do economista russo Kondratieff, retomada teórica e historicamente por Ernst Mandel.

No segundo pós-guerra, o capitalismo viveu a sua «idade de ouro», segundo Eric Hobsbawn, em que coincidiram virtuosamente a maior expansão concomitante das grandes economias capitalistas – Estados Unidos, Alemanha, Japão –, do chamado “campo socialista”, dirigido pela União Soviética, e por economias periféricas, como o México, a Argentina, o Brasil, com os seus processos de industrialização dependente. A economia capitalista não deixou de apresentar os seus ciclos curtos de crise, mas cada novo ciclo retomava a expansão e empurrava a economia para patamares cada vez mais altos.

Foi um ciclo longo expansivo comandado por grandes corporações internacionais de carácter industrial e comercial, apoiado por um sistema financeiro em expansão e por grandes transformações na produção agrícola. Um modelo hegemónico regulador – ou keynesiano ou de bem-estar, conforme se queira chamá-lo – incentivava os investimentos produtivos, tendia a fortalecer a procura interna de consumo, promovia o fortalecimento dos Estados nacionais e a protecção das suas economias.

As crises, como é típico no capitalismo, expressavam processos de super-produção ou de sub-consumo – conforme se queira chamá-las –, reflectindo o desequilíbrio estrutural desse sistema entre a sua – reconhecida já por Marx no Manifesto Comunista – enorme capacidade de expansão das forças produtivas, mas que se chocam constantemente com a sua incapacidade de distribuir renda na mesma medida daquela expansão.

Na sua fase final, o ciclo longo expansivo do segundo pós-guerra viu esse excedente, resultado acumulado da desfasagem entre produção e consumo, transformar-se em capital financeiro – os chamados euro-dólares –, que foi aproveitado por países como o Brasil para reciclar o seu modelo económico, diversificando a sua dependência externa e favorecendo a retomada da expansão económica interna, ainda antes do final do ciclo longo expansivo. Este factor – o golpe militar ainda no ciclo expansivo – diferenciou o cenário económico brasileiro do dos outros países da região, em que as ditaduras coincidiram com recessão, por já se darem no ciclo longo recessivo do capitalismo internacional.

Que características teve o final desse ciclo e o início do novo, de carácter recessivo? Tendo triunfado o diagnóstico de que a estagnação económica se devia ao excesso de regulamentações, o novo modelo centrou-se na desregulamentação, de que as privatizações, as aberturas para o mercado externo, as políticas de “flexibilização laboral”, de ajuste fiscal, foram expressões.

Duas consequências mais importantes devem ser recordadas aqui, para entendermos o carácter da crise actual e seus efeitos para os países latino-americanos. A primeira, o gigantesco processo de transferência de capitais do sector produtivo para o especulativo que a desregulamentação promoveu em escala nacional e internacional. Livre de travas, o capital migrou maciçamente para o sector financeiro e, em particular, para o sector especulativo, onde obtém muito mais lucros, com muito maior liquidez e com menos ou nenhuma tributação para circular.

Configurou-se assim, no modelo neoliberal, a hegemonia do capital financeiro, sob a forma do capital especulativo, fazendo com que mais de 90% dos movimentos económicos se dêem, não na esfera da produção ou do comércio de bens, mas na compra e venda de papéis, nas Bolsas de Valores ou de papéis das dívidas públicas dos governos.

Promoveu-se a financeirização das economias, o que significa, em primeiro lugar, a financeirização dos Estados, cujo primeiro e maior compromisso passa a ser o pagamento das dívidas, isto é, a reserva de recursos mediante o chamado “superávit primário” e a transferência maciça e sistemática de recursos do sector produtivo para o capital financeiro. Grandes grupos económicos têm à sua cabeça um banco, uma instituição financeira, e costumam ganhar mais nos investimentos financeiros que naqueles que deram origem às empresas que os compõem. Grande quantidade de pequenas e médias empresas entraram em processos de endividamento, dos quais não conseguem sair. Outras, assim como consumidores, não se atrevem a buscar empréstimos, pelo medo do endividamento, com as altas taxas de juros.

O capital financeiro passou a ser o sangue que corre pelas economias dos países, definindo o metabolismo que as preside. Um capital que tem na volatilidade, na sua extrema liquidez, um elemento essencial, inerente, aquele que permite deslocar-se rapidamente para onde pode ter maiores vantagens e, ao mesmo tempo, lhe atribui um grande poder de pressão, diante da fragilidade das economias que dependem estruturalmente dele.

As crises na fase neoliberal

Dessas características decorre o carácter centralmente financeiro das crises no período neoliberal, como ficou evidenciado nas crises mexicana, asiática, russa, brasileira e argentina, entre outras. O sector financeiro canaliza para si os excedentes de capital, produto da desfasagem estrutural entre produção e consumo, agudizada na fase actual do capitalismo, em que a elevação da produtividade e a criatividade tecnológica continuaram a aprofundar-se, ao mesmo tempo que se deram processos de concentração de renda entre as classes sociais, entre países e regiões do mundo.

O poder devastador dessas crises e o potencial de contágio revelaram-se da mesma dimensão do tamanho da abertura das economias ao mercado internacional e ao peso que o capital financeiro passou a desempenhar em escala nacional e mundial. O México continuou a sofrer os impactos da crise de 1994 por muitos anos. O mesmo ocorreu com países do sudeste asiático. No Brasil, a crise de 1999 significou a passagem a anos de recessão, que só recentemente foram superados. Na Argentina, a crise teve consequências devastadoras do ponto de vista económico, financeiro, político e social.

São crises que se desatam a partir do elo mais frágil, mais sensível, do processo de reprodução – o sector financeiro –, mas que rapidamente se propagam pelo resto da economia, pelo papel central que esse sector passou a ter e pelos aspectos psicológicos em que assenta. Não por acaso o segundo livro de Francis Fukuyama se chamou Confiança, para denotar como as expectativas, positivas ou negativas, assumem força material no jogo especulativo.

A América Latina foi assim vítima privilegiada dessas crises, que não por acaso atingiram justamente as suas três economias mais fortes, que haviam sido exibidas como modelares – a mexicana, a brasileira e a argentina. Nos três casos a crise assumiu a forma de ataque especulativo, de crise financeira, que se alastra para o conjunto da economia. Os capitais especulativos valem-se do peso desestabilizador que têm na economia, para fazer valer essa posição, pressionando com uma saída brusca e maciça de capitais, acções governamentais ou simplesmente o jogo do mercado, lucrando enormemente com essas operações.

As crises anteriores tinham como cenários países da periferia, com efeitos que intensificaram a tendência para o enfraquecimento dos países globalizados e a intensificação da concentração de renda e de poder dos países globalizadores. Mesmo a crise na Rússia poderia ser caracterizada como a de uma economia tornada periférica, especialmente em meados da década de 1990. A excepção foi a ataque do mega-especulador George Soros à libra esterlina inglesa, mas acabou por ser um caso pontual, que não altera a regra geral de ocorrência das crises nas periferias.

No seu conjunto, como crises neoliberais, provocaram demandas de remédios neoliberais: mais abertura das economias – como se passou fortemente nos países do sudeste asiático –, mais empréstimos do FMI e as correspondentes Cartas de intenção, com aumento dos ajustes fiscais. A economia mexicana recebeu um empréstimo gigante dos Estados Unidos no momento da crise de 1994, inclusive porque se dava no próprio momento em que se assinava o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e do surgimento da rebelião dos zapatistas em Chiapas. Como compromisso, o México usou esses recursos para pagar os empréstimos dos bancos norte-americanos e continuou a aprofundar o modelo neoliberal.

O governo brasileiro de FHC, frente à crise de 1999, elevou a taxa de juros a 49% e assinou a terceira Carta de intenções com o FMI, cujas consequências estenderam a recessão por vários anos. Na Argentina, a crise de explosão do modelo de paridade do peso com o dólar, produziu a maior regressão económica e social que o país conheceu em toda a sua história. O governo de Fernando de la Rua tentou manter o modelo herdado de Carlos Menem e com isso caiu com poucos meses do seu mandato presidencial.

A crise actual e suas consequências

A crise anterior da economia norte-americana deu-se em 2000, quando se desvanecia a ilusão de que a “nova economia” permitiria que o capitalismo não sofresse mais as suas crises cíclicas, seja porque a informática permitira prevê-las e permitira que fossem evitadas, seja porque novas procuras, como as de computadores, gerariam, da mesma forma que no caso dos automóveis, o lançamento anual de novos modelos, que estenderiam cada vez mais a procura. Naquele momento, o papel do mercado norte-americano no mundo continuava a ser determinante no mundo, transferindo os efeitos da sua recessão para o resto da economia mundial.

Desta vez, a crise norte-americana dá-se em um cenário internacional modificado. A contínua expansão de países emergentes – entre eles sobretudo a China e a Índia, mas também países latino-americanos, que mantêm ritmos constantes de crescimento, entre os quais particularmente o Brasil e a Argentina – amortece a diminuição da procura dos EUA e, pela primeira vez, a recessão da economia norte-americana não tem efeitos directos e devastadores sobre a economia mundial.

Porém, como essa crise se vê agravada com o aumento dos preços dos produtos agrícolas e a continuada crise do petróleo, constituindo-se, na verdade, numa tripla crise, os seus efeitos são mais profundos e extensos do que apenas uma crise cíclica da economia norte-americana. São afectadas então, não apenas as exportações para os Estados Unidos, mas também os importadores de energia e de produtos agrícolas, lista que, em uma ou outra proporção, afecta todos os países do mundo.

No entanto, como todo fenómeno de um sistema marcado pela extrema desigualdade de riqueza e de poder entre regiões e países e dentro de cada país, os efeitos das crises não são igualmente repartidos entre todos. Há ganhadores e perdedores, algozes e vítimas.

Como a crise está em pleno desenvolvimento, os seus alcances não podem ainda ser julgados em toda a sua plenitude e dão-se pugnas para ver quem consegue extrair vantagens, quem trata de perder menos, ainda não é possível saber com precisão os danos em toda a sua extensão e quem arcará com eles. É certo que o mundo sairá modificado desta crise, até mesmo porque toca em três pontos nodais das relações económicas e de poder actuais: dinheiro, energia e comida. No entanto, as estruturas de poder, de produção e de distribuição de riqueza reinantes, garantem resultados absolutamente diferenciados para distintas regiões e países como efeito das crises.

Na combinação entre aumento dos preços do petróleo, dos produtos agrícolas e diminuição da procura dos EUA e da Europa, os países mais pobres, que somam a grande maioria da África, da Ásia e da América Latina, perderão claramente, com fortes pressões recessivas, déficit na balança comercial e aumento do endividamento. Os países exportadores de petróleo e de produtos agrícolas com altas mais significativas, terão as suas situações minoradas, mas as pressões inflacionárias não poupam nenhum país e, com elas, as políticas recessivas voltam a ganhar peso.

Para a América Latina, os efeitos são mais pesados e directos para os países que continuam a depender mais fortemente do comércio com os Estados Unidos: o México, a América Central e o Caribe, em primeiro lugar. Em segundo lugar, os países com pautas exportadoras menos valorizadas ou aqueles que tiveram o seu ciclo de expansão económica excessivamente voltado para as exportações, em particular as economias mais abertas, entre elas as que têm tratados de livre comércio com os Estados Unidos, como o Chile, o Peru, além dos já mencionados México, Costa Rica e outros países centro-americanos e caribenhos. Relativamente menos afectados devem ser os países com pautas exportadoras mais diversificadas – seja nos produtos, seja nos mercados -, como o Brasil, em parte a Argentina, e os que participam dos processos de integração regional – seja o Mercosul, seja a ALBA. Para estes, as crises são uma oportunidade especial para acelerar e intensificar os processos de integração, de comércio, assim como nos planos financeiro e energético.

Seja pela combinação das crises, seja porque afecta profundamente os Estados Unidos, no momento em que, pela primeira vez, o seu peso na economia mundial decresce, o mundo e a América Latina em particular, terão fisionomias distintas, seja acelerando transformações já em andamento, seja dando início a novas dinâmicas, passadas as crises – cujas durações e profundidades ainda não podem ser medidas com toda a precisão.

sábado, 20 de setembro de 2008

Michael Moore e Sicko, na visão de John Pilger

Aqui vão duas reportangens de John Pilger, brilhante jornalista australiano, erradicado no Reino Unido sendo correspondente de um jornal londrino e escritor de alguns livros como "Os Novos Senhores do Mundo", onde critica veementemente o imperialismo dos países centrais.

No primeiro texto Pilger analisa o último documentário de Michale Moore, Sicko, de forma efusiva, bem como seus antigos comentário. Mais adianta mostra como os consecutivos gorvenos liberais, do Partido Trabalhista, de Tony Blair e Gordon Brown vem ameaçando o serviço nacional de saúde.


Porque Eles temem Michael Moore

por John Pilger

Em Sicko, o novo filme de Michael Moore, aparece um jovem Ronald Reagan apelando à classe trabalhadora americana para rejeitar a "medicina socializada" como subversão comunista. Nas décadas de 1940 e 1950 Reagan foi empregado pela American Medical Association e pela grande indústria como o amável porta-voz de uma tendência neo-fascista a fim de persuadir os americanos comuns de que os seus verdadeiros interesses, tais como cuidados universais de saúde, eram "anti-americanos".

Ao ver isto, encontrei-me a recordar os efusivos adeuses a Reagan quando morreu três anos atrás. "Muitas pessoas acreditam", disse Gavin Esler na
Newsnight da BBC, "que ele restaurou a fé na acção militar americana [e] era amado até pelos seus adversários políticos". No Daily Mail, Esler escreveu que Reagan "corporificava o melhor do espírito americano — a crença otimista de que os problemas podem ser resolvidos, de que amanhã será melhor do que hoje, e de que os nossos filhos serão mais ricos e mais felizes do que nós somos".


Tantas idiotices acerca de um homem que, como presidente, foi responsável pelo banho de sangue na América Central durante a década de 80, e pela ascensão do próprio terrorismo que produziu a al-Qaeda, tornaram-se uma mentira acreditada e propagada por todos os meios. A participação de Reagan em Sicko é um raro vislumbre da verdade da sua traição ao país dos colarinhos azuis que ele dizia representar. As trafulhices de um outro presidente, Richard Nixon, e de uma aspirante a presidente, Hillary Clinton, são igualmente reveladas por Moore.

Exatamente quando parecia que pouco restava a dizer acerca do grande trafulha do Watergate, Moore extrai das fitas da Casa Branca de 1971 uma conversação entre Nixon e John Erlichman, seu ajudante que acabou na prisão. Um rico apoiante do Partido Republicano, Edgar Kaiser, chefe de uma das maiores companhias de seguro de saúde, está na Casa Branca com um plano para "uma indústria nacional de cuidados de saúde". Erlichman remete-o para Nixon, o qual está aborrecido até que a palavra "lucro" é pronunciada.

"Todos os incentivos", diz Erlichman, "correm do modo certo: quanto menos cuidados [médicos] eles lhes derem, mais dinheiro eles fazem". Ao qual Nixon replica sem hesitação: "Boa!" A cena seguinte mostra o presidente a anunciar à nação um grupo de trabalho que fará um sistema "dos melhores cuidados de saúde". Na verdade, é um dos piores e mais corruptos do mundo, como mostra Sicko, negando a humanidade comum a uns 50 milhões de americanos e, para muitos deles, o direito à vida.

A sequência mais assombrosa é capturada por uma câmara de segurança numa rua de Los Angeles. Uma mulher, ainda com o seu avental de hospital, cambaleia através do tráfego, para onde foi atirada pela companhia (aquela fundada pelo apoiante de Nixon) que dirige o hospital ao qual estava autorizada. Ela ainda está mal e assustada e não tem seguro de saúde. Ainda usar a sua pulseira de admissão, embora o nome do hospital tenha sido cuidadosamente apagado.

Mais tarde encontramos este fascinante casal liberal, Bill e Hillary Clinton. É o ano de 1993 e o novo presidente está a anunciar a designação da primeira dama como aquela que cumprirá a sua promessa de dar à América um cuidado de saúde universal. E aqui está a própria "encantadora e inteligente" Hillary, quando um senador chama-a, lançando a sua "visão" para o Congresso. O retrato de Moore da loquaz, trocista e sinistra Hillary recorda
Bob Roberts, a soberba sátira política de Tim Robbins. Você sabe que o seu cinismo já está na sua garganta. "Hillary", informa a voz de Moore, "foi premiada pelo seu silêncio [em 2007] como a segunda maior receptora do Senado de contribuições da indústria de cuidados de saúde".
http://en.wikipedia.org/wiki/Bob_Roberts

Moore disse que Harvey Weinstein, cuja companhia produziu
Sicko e que é amigo dos Clintons, quis cortar esta parte, mas ele recusou. O assalto ao candidato do Partido Democrático que provavelmente terá o próximo presidente é um desvio de Mooore que, na sua campanha pessoal de 2004 contra George Bush, apoiou a candidatura presidencial de general Wesley Clark, que bombardeou a Sérvia, e defendeu o próprio Bill Clinton, afirmando que "nunca ninguém morreu devido ao sexo oral". (Talvez não, mas meio milhão de crianças iraquianas morreu devido ao sítio medieval de Clinton ao seu país, assim como milhares de haitianos, sérvios, sudaneses e outras vítimas das suas incontáveis invasões).

Com esta aparente nova independência, a destreza de Moore e o humor negro em Sicko, que é um brilhante trabalho de jornalismo, sátira e feitura de filmes, explica – talvez ainda melhor do que os filmes que lhe deram fama, Roger and Me, Bowling for Columbine e Fahrenheit 9/11 sua popularidade e influência, assim como seus inimigos. Sicko é tão bom que você esquece os seus viéses, nomeadamente a romantização de Moore do Serviço Nacional de Saúde britânico, ignorando um sistema de dois níveis que negligencia os idosos e os doentes mentais.

O filme abre com um amargo carpinteiro a descrever como teve de fazer uma escolha depois de dois dedos serem cortados por uma serra eléctrica. A escolha era US$60.000 para restaurar um dedo indicador ou US$12.000 para restaurar um dedo médio. Ele não podia permitir-se arcar com as despesas de ambos, e não tinha seguro. "Sendo um romântico irremediável", diz Moore, "ele escolheu o dedo anular" no qual usa a sua aliança de casamento. O talento de Moore conduz-nos a cenas abrasadoras, ainda que não sentimentais, tais como a ira eloquente de uma mulher a cuja filha pequena foi negado cuidado hospitalar e morreu de um ataque. Poucos dias depois de Sicko ser lançado nos Estados Unidos, mais de 25 mil pessoas inundaram o sítio web de Moore com histórias semelhantes.

A Associação dos Enfermeiros da Califórnia e o Comité Organizador Nacional dos Enfermeiros enviaram voluntários para viajar com o filme. "No meu entender", diz Jan Rodolfo, um enfermeiro de oncologia, "ele demonstra o potencial para um verdadeiro movimento nacional porque obviamente está a inspirar muitas pessoas em muitos lugares".

A "ameaça" de Moore é a sua visão certeira a partir da base. Ele elimina a satisfação com a qual a elite da América e os media entretêm as pessoas comuns. Isto é um assunto tabu entre muitos jornalistas, especialmente aqueles que afirmam terem ascendido ao nirvana da "imparcialidade" e outros que declaram ensinar jornalismo. Se Moore simplesmente apresentasse vítimas como de costume, com corridas de ambulância, deixando os espectadores chorosos mas paralisados, ele teria poucos inimigos. Não seria encarado como um polemista e auto-promotor e todas as outras etiquetas pejorativas que aguardam aqueles que dão um passo para além das fronteiras invisíveis em sociedades onde se diz que a riqueza equivale à liberdade. Os poucos que escavam mais fundo na natureza de uma ideologia liberal que se considera a si própria como superior, ainda que seja responsável por crimes em proporções enormes e geralmente não reconhecidos, arriscam-se a serem eliminados do jornalismo "de referência", especialmente se forem jovens — um processo que um antigo editor certa vez descreveu-me como "uma espécie de defenestração gentil".

Ninguém avançou tanto como Moore, e os seus detratores são perversos ao dizer que ele não é um "jornalista profissional" quando o papel do jornalista profissional é tantas vezes o de servir com zelo, ainda que sub-repticiamente, o status quo. Sem a lealdade destes profissionais no New York Times e outras augustas instituições midiáticas "de registo" (a maior parte delas liberal), a invasão criminosa do Iraque poderia não ter acontecido e um milhão de pessoas hoje estariam vivas. Posicionado no lugar sagrado de Hollywood – o cinema – o
Fahrenheit 9/11 de Moore lançou uma luz nos seus olhos, penetrou no buraco da memória, e contou a verdade. Eis porque audiências por todo o mundo aplaudiram-no de pé e com entusiasmo.

O que me impressionou quando vi pela primeira vez Roger and Me, o primeiro grande filme de Moore, foi que éramos convidados a gostar de americanos comuns pela sua luta e resistência e política que ia para além da barulhenta e falsificada indústria da democracia americana. Além disso, é claro que eles "captavam-no": que apesar de ser rico e famoso ele é, no fundo, um deles. Um estrangeiro a fazer algo semelhante arriscar-se-ia a ser atacado como "anti-americano", uma expressão que Moore utiliza muitas vezes como ironia a fim de demonstrar a sua desonestidade. De repente, ele despede-se da espécie de asneiradas sem sentido, como aquela de uma série da Radio 4 da BBC que apresentou a humanidade como pro- ou anti-americana enquanto o repórter extasiava-se acerca da América, "a cidade sobre a colina".

Igualmente tendencioso é um documentário chamado
Manufacturing Dissent, o qual parece ter sido produzido para desacreditar, se não o Sicko, o próprio Moore. Feito pelos canadenses Debbie Melnyk e Rick Caine, ele diz mais acerca de liberais que gostam de ver os dois lados e os ciúmes invejosos dos presunçosos. Melnyk conta-nos ad nauseam o quanto ela admira os filmes e a política de Moore e é por eles inspirada, a segue procede a uma tentativa de assassínio do seu caráter com uma enxurrada de afirmações e boatos acerca dos seus "métodos", juntamente com abuso pessoa, tal como aquele do crítico que objectou quanto ao caminhar "balouçante" de Moore e mais alguém que disse considerar que Moore realmente odiava a América — era anti-americano, nada menos!

Melnyk critica Moore ao perguntar-lhe porque, na sua tentativa de obter uma entrevista de Roger Smith da General Motors, deixou de mencionar que já havia falado com ele. Moore disse que entrevistou Smith muito antes de começar a filmar. Quando ela por duas vezes intercepta o caminho de Moore, é certamente porque está envergonhada com a sua resposta afável. Se há um renascimento dos documentários, ele não é beneficiado por filmes como este.

Isto não significa sugerir que Moore não deveria ser criticado e desafiado sobre se ele, sim ou não, "excedeu-se" quanto às normas aceitas, assim como o trabalho do reverenciado pai dos documentários britânicos, John Grierson, tem sido reexaminado e questionado. Mas a paródia irresponsável não é o caminho. Rodar a câmara em torno, como tem feito Moore, e revelar o "governo invisível" dos grandes poderes de manipulação e muitas vezes de propaganda subtil certamente é um caminho. Ao fazer assim, o autor de documentários rompe o silêncio e cumplicidade descritos por Günter Grass na sua confissão autobiográfica,
Peeling the Onion, tal como a mantida por aqueles que "fingem a sua própria ignorância e atestam a de outro... distraindo a atenção de algo que se pretende esquecer, algo que no entanto recusa-se a ir embora".

Para mim, um Michel Moore anterior foi aquele outro grande denunciante "anti-americano", Tom Paine, que incorreu nas iras do poder corrupto quando advertiu que se à maioria do povo estava a ser recusada "as ideias da verdade", era tempo de derrubar o que chamou a "Bastilha das palavras" e que nós chamamos "os midia". Esse tempo está mais que ultrapassado.


Sicko 2: A destruição do Serviço Nacional de Saúde Britânico

por John Pilger

Deitado numa cama de hospital, cumpridos bem todos os procedimentos, com uma chávena de chá a acompanhar agradavelmente a última dose de morfina, assistimos ao que há de melhor. Por melhor, quero dizer um vislumbre de uma sociedade sem os dogmáticos histriões da mídia e da política determinados a mudar a forma como pensamos. Isso é o que há de pior. Por melhor, recordo a inesquecível manifestação dos mineiros de Murton, Condado de Durham, surgindo em meio ao nevoeiro numa fria manhã de Março, com as mulheres a desfilarem à frente, a voltarem para o fosso da mina. Não importa que tenham sido derrotados por forças superiores, eles eram os melhores.

Numa cama de hospital, provavelmente o melhor é mais corriqueiro, com pessoas a trabalhar rotineiramente, escutando, respondendo, tranquilizando. O vocabulário dessas pessoas não é o da linguagem empresarial. A sua 'produtividade' não é um artifício para o lucro. O seu empenhamento não tem uma meta a cumprir e a sua camaradagem é como uma presença, e nós passamos a fazer parte dela. O denominador comum é a humanidade e a preocupação. Que exótico que isto soa. Ligamos a televisão do hospital e deparamos com um outro mundo bizarro de "notícias", com idiotas famosos a tecerem a destruição final da sociedade.


Lá está o louco do Blair a apelar para um ataque ao Irã e o secretário da educação, Ed Balls, a vender os seus diplomas falsos, e o primeiro-ministro Gordon Brown, que acabou de receber Rupert Murdoch e Alan Greenspan, a anunciar o seu "regresso à liberdade" juntamente com as suas últimas "reformas" que são uma safadeza para com a instituição que personifica a liberdade na Grã-Bretanha: o Serviço Nacional de Saúde. Nenhum deles tem a mais pequena ligação com as pessoas que mantêm o meu hospital a funcionar. O divisor de águas na Grã-Bretanha de hoje está entre uma sociedade representada por aqueles que mantêm o Serviço de Saúde a funcionar, e a sua mutação sintetizada pelo governo trabalhista de Blair e de Brown.
No filme
Sicko, de Moore, o socialista Tony Benn profetiza uma revolução na Grã-Bretanha se o SNS for abolido. Mas o Serviço de Saúde da Grã-Bretanha está a ser destruído por desgaste, e se as últimas "reformas" não forem impedidas, será tarde demais para erguer barricadas. A 5 de Outubro, o secretário da Saúde, Alan Johnson, aprovou uma lista de catorze empresas que serão consultoras e assumirão a "delegação de poderes" dos serviços do SNS. Ser-lhes-á dada a possibilidade de escolha, se não o próprio controlo, sobre quais os tratamentos que os doentes devem receber e quem é que os irá proporcionar. Elas têm garantidos lucros de muitos milhões
Essas empresas incluem as americanas UnitedHealth, Aetna e Humana. Estas organizações totalitárias têm sido multadas muitas vezes pelo seu conhecido papel no sistema de serviços de saúde americanos. No ano passado, o director geral da UnitedHealth, William McGuire, que ganhava 125 mil de dólares por ano, demitiu-se na sequência de um escândalo de direito de opção. Em Setembro, a companhia aceitou pagar 20 mil dólares de multa "por não atender a reclamações e não responder às queixas dos doentes". A Aetna teve que pagar 120 mil dólares de indenização depois de um júri na Califórnia a ter condenado por "má-fé, opressão e fraude". No filme
Sicko, mostra-se uma analista médica da Humana a testemunhar no Congresso que provocou a morte de um homem por lhe recusar assistência para poupar o dinheiro da empresa. Todos os anos morrem cerca de 18 mil americanos porque não têm acesso aos cuidados de saúde ou porque não os podem pagar. Estas empresas são as amigas do governo trabalhista. Simon Stevens, antigo conselheiro da política de saúde de Blair, é hoje diretor executivo da UnitedHealth. Julian Le Grand, que escreve no Guardian como um distinto professor, dá a sua aprovação esclarecida às "reformas" – também ele foi conselheiro de Blair.

Em Manchester, há outras "reformas" em vias de destruir os serviços do SNS para os doentes mentais. William Scott suicidou-se depois de deixar de ter o apoio de um trabalhador do SNS que tratou dele durante oito anos. O que tudo isto significa é que o SNS está a passar sub-repticiamente para a privatização. É esta a política não confessada do governo de Brown, cujas ações predadoras no exterior estão a ser copiadas internamente. Foi Brown, enquanto tesoureiro, que promoveu a desastrosa "iniciativa financeira privada" como uma artimanha para construir novos hospitais, enquanto entregava enormes lucros a companhias suas protegidas. Em consequência disso, o SNS está a ser sangrado em 700 mil libras por ano. Isto provocou uma desnecessária "crise financeira" que é o argumento do 'Ardil 22' para permitir que apareçam mais oportunistas para se apoderem do que foi outrora a maior proeza do antigo governo trabalhista. Vamos permitir que eles se safem com isto?



quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Rússia

Entre a nostalgia soviética

e o novo patriotismo

A nostalgia da URSS e sua reavaliação pela população é um fato, mas numa realidade que não permite mais um retorno ao ’sovietismo’. A liquidação do sistema social soviético, as privações, o papel do dinheiro e as pressões do mundo globalizado atingiram um ponto em que não há mais volta.

Jean-Marie Chauvier

Bandeiras vermelhas tremulam novamente nas celebrações oficiais da vitória sobre a Alemanha nazista

Quem nunca viu, mesmo que no cinema, o monumento assinado por Vera Moukhina representando o operário e a camponesa kolkhoz lançando-se em direção ao futuro radiante empunhando a foice e o martelo1? Instalado na entrada do parque de exposições em Moscou, ele acaba de ser desmontado. Talvez, não para ser posto de lado, mas para ser reformado. Bandeiras vermelhas tremulam novamente no 9 de maio, nas celebrações oficiais da vitória sobre a Alemanha nazista, como nos desfiles comunistas do 1º de maio e 7 de novembro2. O hino da URSS ressoa novamente3. Adolescentes exibem malhas com a inscrição “Minha pátria, a URSS”. Grupos de rock reciclam os “sucessos” soviéticos. A faixa de FM, em Moscou, repercute especialmente canções em língua russa. Cafés da moda e publicidades comerciais também estão cobertos de símbolos soviéticos, testemunhando assim uma “nostalgia” pós-moderna.

Essa volta do pêndulo teve início em meados dos anos 1990. Os filmes soviéticos passam novamente na televisão – “a pedido do público”, dizem as emissoras. Um editorialista se inquieta: o “o povo soviético” está sempre lá, a nostalgia aparece como “a dominante do humor local4”. As pesquisas de institutos considerados sérios confirmam: “57% dos russos querem a volta da URSS” (2001), 45% consideram o sistema soviético como “melhor” que o atual, 43% desejam mesmo “uma nova revolução bolchevique” (2003). As opiniões sobre o presente também se mostram pouco “corretas”: descrédito da “revolução democrática” de agosto de 19915 e rejeição em massa (quase 80%) das grandes privatizações “criminosas”. Os democratas vituperam: amnésia (“eles esqueceram o gulag e as penúrias”), o ódio aos ricos “porque são ricos”, mediocridade de descrentes e dos velhos, “a biologia resolverá o problema”. Com Vladimir Putin, os acontecimentos políticos vieram confortar suas angústias: processos judiciais contra muitos dos grandes oligarcas por seus amigos e financiadores6, retomada do controle das grandes mídias pelo Kremlin, reabilitação da NKVD e da KGB7, influência crescente dos “siloviki8” e do FSB (Serviço Federal da Segurança), desejo de restaurar a influência russa no espaço ex-soviético, críticas oficiais dirigidas aos Estados Unidos e sua penetração nesse espaço, oposição à guerra do Iraque. E isso, apesar da “aliança estratégica” selada pelo presidente Putin em Washington no dia seguinte ao 11 de setembro de 2001.

No entanto, esforços não foram poupados para erradicar o comunismo. Desde 1991, os russos estão submersos em arquivos, artigos, livros e programas de televisão que denunciam os “crimes bolcheviques”: terror vermelho sob Lênin e Trotski, “Grande terror” sob Stalin, fome de 1932-1933, gulag, deportação de povos “punidos” ou “suspeitos” de colaboração com a Alemanha nazista, repressões sob Brejnev. A “batalha da memória” conjugada com a promoção dos “valores mercantis democratas” foi levada a termo, com entusiasmo, por grandes mídias, jornalistas, historiadores, respaldada por uma vasta rede ocidental e, sobretudo, americana, de instituições, universidades e fundações – Ford, Soros, Hoover, Heritage, Carnegie, USIS, USAID, sem falar dos filantropos oligarcas da Rússia9.

Revisionismo caricatural

A “batalha da memória” conjugada com a promoção dos “valores mercantis democratas” foi levada a termo

Os debates contraditórios da época Gorbatchev10 foram substituídos por acusações contra o “Império do Mal” em todas as suas encarnações. A virulência desse anticomunismo russo é de dar inveja aos cruzados ocidentais. É preciso, a cada momento da crise que ameaça o novo regime, agitar o espantalho do “retorno dos vermelhos” e da guerra civil. A condenação do “bolchevismo” leva à reabilitação de seus opositores, principalmente o movimento branco e as dissidências. Até algumas colaborações com os nazistas são “compreendidas”. É assim que o cronista do Izvestia Maxim Sokolov tenta explicar: “A época era complexa... (o Terceiro Reich) era o único bastião a proteger a Europa da barbárie bolchevique. Se tivesse vivido até hoje, o Reichsfüher SS (Himmler) seria provavelmente honrado como combatente contra o totalitarismo11”.

Esse revisionismo caricatural – que ignora os contextos reais, os períodos, os regimes, as sociedades e as culturas muito diversas da história soviética – é contestado por vários historiadores, mas não são eles que dão o tom. Muito mais amplamente difundidos são os best-sellers de Viktor Suvorov12. O mais recente, lançado no final de 2002, começa com a seguinte afirmação: “Todos os dirigentes soviéticos, sem exceção, foram crápulas e não valem nada”.

Um dos pioneiros do anticomunismo oficial, Alexandre Tsipko, considera contraprodutiva essa forma de denegrir. Seus efeitos desmoralizadores, combinados com as “reformas confiscatórias” que ele já lamentava em 1995, “prepararam o campo para uma reabilitação da história soviética” 13. Ele estava certo. Os ataques visam, além do “sistema”, os valores igualitários e coletivistas, comunitários, tanto russos tradicionais como soviéticos. Eles visam as “pessoas de baixo”, os operários que, ao mesmo que tempo que são desestabilizados na sua condição de vida, são estigmatizados como “cúmplices” do antigo regime, “ajudados”, “preguiçosos” e “inúteis” ao progresso industrial14.

Sentimentos contraditórios

Os debates da época Gorbatchev foram substituídos por acusações contra o “Império do Mal” em todas as suas encarnações

Apesar dessa avalanche, a Rússia ainda escapa do “pensamento único” sobre a URSS. Há ali experiências vividas em demasia, heranças culturais, memórias dilaceradas para permitir esse tipo de uniformidade. Os relatos de vida podem, numa mesma inspiração, trazer ecos caóticos de tempos extremados em que as fronteiras entre a fé cristalina, as alegrias positivas, a descida incompreendida e súbita aos infernos de um terror cego, eram móveis, imprevisíveis.

Uma testemunha maior do universo dos campos de concentração, Varlam Chalamov15 , evoca sua juventude agitada, a irradiação de Lênin e dos ideais da revolução (“quantos horizontes, quanta imensidade se ofereciam ao olhar de cada um, do homem mais comum”), nesse período soviético muito ambíguo dos anos 2016 . A voz do destino mais comum, ao deixar perceptíveis as razões da adesão popular àquele socialismo, se faz ouvir através do relato de Lioudmilla, filha de camponeses brutalizados pela deskulakização, mas que ultrapassa a fronteira dos mundos para vencer com esforço, na cidade, o caminho da promoção social17 .

Esse foi, realmente, o caminho de milhões de habitantes do mundo rural. Entre os camponeses, que viveram a guerra civil e permaneceram na aldeia depois da “grande ruptura” da coletivização, outros relatos de vida foram coletados a tempo18 , no início dos anos 1990, quando a palavra foi liberta antes de ser “reformatada” pela ideologia anticomunista dominante.

“Luminosos” anos 60

Há experiências vividas em demasia, heranças culturais, memórias dilaceradas para permitir um pensamento único

Um dos problemas da memória “reconstruída” nesse novo contexto é a arregimentação de vítimas e mártires a serviço de uma ideologia “antitotalitária” formulada a posteriori. Pois, entre eles havia muitos comunistas e opositores da esquerda trotskista19 - pessoas que, voltando ao campo, não deixaram de crer e de servir ao “socialismo” ao qual, hoje, se pretende que elas reneguem. Quem fala, e com qual direito, em nome dos mortos?

Mas a maior parte dos ex-soviéticos ainda vivos não conheceu os tempos piores. Evocam os quarenta anos vividos depois da guerra e da morte de Stalin. Um artista se lembra da atmosfera doa nos 1960: “Eu idealizo, talvez, mas havia na época um entusiasmo otimista no país. Não falo de política, mas do clima moral das pessoas que me cercavam. O impulso dado pelos Beatles revelou a aspiração ao amor, que teve seu auge com o movimento hippie. Era um tempo luminoso que me ensinou a viver olhando o futuro com otimismo”. Choque e conivência com referências imprevisíveis: uma em compasso com os ideais oficiais (“o futuro com otimismo”), a outra com uma cultura não-conformista (os Beatles).

A confiança nas perspectivas de um país em pleno arranque, onde ninguém tinha medo do dia seguinte, coexistia com o apoliticismo e as tentações de uma cultura alternativa. Outros, contestadores do regime de Brejnev, sentem falta do tempo em que se refazia o mundo nas cozinhas. “O futuro ainda não tinha acontecido” – e ele seria, sabemos, bem decepcionante. Quantos dentre eles, depois de 1991, retiraram-se da cena, doentes, deprimidos ou mortos de tristeza ao ver o que produziu a mudança tão esperada?

Separação dolorosa

A maioria dos ex-soviéticos ainda vivos não conheceu os tempos piores e evocam os anos 60

“Os novos chefes não dão crédito aos chestidisiatniki, as pessoas dos anos 1960”, conta Vassili Jouravliov, “porque esses são para eles uma reprovação viva”. Pois foi sobre suas costas que os oligarcas e outros homens de negócios alçaram-se ao poder20 ”. Antigos jovens – que não eram nem militantes, nem contestadores, nem intelectuais ou quadros do partido, mas simplesmente ávidos de viver plenamente – haviam deixado o conforto urbano pelas “grandes construções” dos anos 1950-1980, por romantismo ou atraídos pela recompensa. A construção da “cidade de sábios” em Novossibirski, as grandes centrais sobre os rios siberianos, os complexos industriais de Togliatti e em Kama, o segundo transiberiano, o BAM, deixaram neles, quase sempre, lembranças de uma juventude intensa, apesar do sentimento comum hoje ser de imenso desperdício.

Outros voltaram marcados de uma aventura abominável: a guerra do Afeganistão, da qual os mutilados, de mais ou menos 40 anos, falam nas ruas e no metrô. E a geração jovem “retornada da Chechenia”, outra abominação, já toma o seu lugar. Porém, a maioria não participou de engajamentos tão fortes. Viveu, simplesmente, imersa em um modo de vida, de relações sociais, em uma cultura da qual separou-se com dor. Nascido em 1961, o escritor ucraniano Andreï Kourkov fala, a seu modo, de algo que não era raro: “Essa sociedade era fundada na amizade. Era possível bater na porta dos vizinhos, se precisasse de dinheiro, eles o emprestariam. Depois da queda, toda essa solidariedade ruiu (...) As pessoas que nasceram logo depois da queda, que têm 20 anos, adaptam-se muito rápido. Para a minha geração, a solidão é a doença da época. Perdi muitos amigos. Muitos suicidaram-se, outros emigraram21 ”.

Lembrança de relações de convivência, ou vivacidade de uma cultural social ainda perceptível nas resistências à liberalização? A estudiosa Lioudmila Boulavka relata testemunhos dos meios operários comprometidos nos recentes movimentos de protesto: os militantes julgam com severidade suas próprias ilusões dos anos 1989-1991 (o apoio aos democratas), sentem uma perda dolorosa com o final da URSS, não aceitam que os patrões façam a lei sem consultá-los, querem crer ainda que “o Estado, somos nós”, permanecem ligados a uma cultura de consenso e de paternalismo social22.

Vozes da reabilitação

Os operários comprometidos nos recentes movimentos de protesto sentem uma perda dolorosa com o final da URSS

Todo um continente de conhecimentos falta aos ocidentais para que eles compreendam o que é essa “perda” tão sentida: o universo de uma cultura, a densidade de uma vida social que não podem ser enquadrados com nenhuma ideologia. Onde classificar, nas suas gavetinhas, tanto a vanguarda quanto a cultura popular de massa que marcou gerações, as comédias musicais de Alexandrov e o jazz de Utesov, o humor de Ilf e Petrov, as aventuras do soldado Vassili Tiorkine, os personagens “aos pares” do cinema de Vassili Choukchine, a arte amadora dos clubes de fábricas e vasto movimento das canções de compositores, a “contestação” de massa mais importante nos anos 1960-1980? Onde situar a recente decisão dos bardos não-conformistas de todas as idades de consagrarem como “canção do século” a balada “Grenada” de Mikhaïl Svetlov, “poeta do Komsomol” dos anos 1920? Será possível transmitir mensagens dessa Atlântida que realmente existiu?

Uma pesquisa realizada com o concurso da fundação alemã Friedrich Ebert, e dirigida por Mikhail Gorchkov23 , mostra a que ponto a “reabilitação da URSS” procede de uma reflexão amadurecida, sem estereótipos. Ela revela o fracasso do poder e das mídias na sua tentativa de apresentar os setenta anos soviéticos como um “pesadelo”, estimando, até, que a pressão exercida nesse sentido esgotou seus efeitos. As avaliações diferem, contudo, segundo os períodos propostos e a idade das pessoas que respondem à pesquisa.

“Os crimes do stalinismo não podem ser de forma alguma justificados” – é o ponto de vista de 75,6 % entre 16-24 anos; de 73,5% de 25-35 anos; de 74% de 36-45 anos; de 66,8% dos 46-55 anos; de 53,1% dos 56-65 anos. “As idéias marxistas eram justas”: as respostas positivas variam, dos mais jovens aos mais velhos, de 27,4% a 50,3%. “A democracia ocidental, o individualismo e o liberalismo são valores que não convêm aos russos”: esta opinião e aprovada por 62,9% dos 56-65 anos, mas apenas 24,4 % dos 16-24 anos. Entre as “razões de orgulho”, cerca de 80 %, em todas as categorias de idade, citam a vitória de 1945. Quem tem mais de 35 anos escolhe em segundo lugar a reconstrução do pós-guerra, os mais jovens (16-35) citam “os grandes poetas russos, os escritores, os compositores”. Em média, 60% citam as explorações das viagens espaciais. A afirmação segundo a qual “a URSS foi o primeiro Estado de toda a história da Rússia a assegurar a justiça social para as pessoas simples” é escolhida pela maioria das pessoas com mais de 35 anos, 42,3 % entre 25-35 anos, e apenas 31,3 % entre 16-24 anos.

Herança pesada das “reformas”

Pesquisa revela o fracasso do poder e das mídias na tentativa de apresentar os 70 anos soviéticos como um “pesadelo”

Entre as características dos diferentes períodos, a maioria dos participantes designa principalmente: o período do Stalin seria a era da disciplina e da ordem, do medo, dos ideais, do amor à pátria, de um desenvolvimento econômico rápido; o período do Brejnev: proteção social, satisfação, sucesso na ciência e na técnica, ensino, confiança entre as pessoas; e o período atual: criminalidade, incerteza do futuro, conflitos entre nações, possibilidade de enriquecer, crise e injustiça social. As pessoas de opinião liberal concordam com um balanço positivo da era Brejnev (25%), entre os comunistas (45,9%); com um balanço negativo da era Yeltsin (21%), entre os comunistas (59%).

Quanto ao futuro, uma ampla maioria pronuncia-se a favor de uma gestão estatal dos grandes setores da economia, do ensino e da saúde; só reconhecem o valor da gestão mista (com o setor privado) nos campos da alimentação, da moradia e das mídias. Uma maioria (54%) “escolheu uma sociedade de igualdade social” e definiu como o principal caráter da democracia “a igualdade dos cidadãos diante da lei”.

Evolutiva, a visão do passado é, portanto, filtrada pela experiência de “reformas de mercado”, cujo caráter desastroso é, entretanto, amplamente reconhecido. A primeira inspiradora dessas reformas, a socióloga Tatiana Zaslavskaïa24 , estima que os trabalhadores são “ainda mais alienados da propriedade e privados de direitos do que na época soviética. (...) A produção não está apenas reduzida, mas degradada do ponto de vista estrutural e tecnológico. (...) Setores que asseguravam as necessidades sociais na época soviética e aumentavam, ainda que modestamente, a qualidade de vida da população, hoje se degradam cada vez mais. As conquistas democráticas da época da perestroïka e da glasnost estão em perigo. (...) A polarização da sociedade tomou um vulto colossal: de 20 a 30% da população vivem sérias privações, habitam moradias em ruínas, têm fome, são doentes e morrem prematuramente”.

Universo plural

Evolutiva, a visão do passado é filtrada pela experiência de “reformas de mercado”, cujo caráter desastroso é reconhecido

O economista liberal Grigori Iavlinski fala de “desmodernização” da Rússia, o ecologista Oleg Ianitskii de “sociedade de todos os riscos”. “Vivíamos atrás da cortina de ferro”, explica o historiador Viktor Danilov. “Ignorando as realidades exteriores, acreditávamos viver na miséria do nivelamento. Agora que a cortina de ferro caiu (...) sofremos a provação da verdadeira miséria. Sabemos, hoje, que na época soviética, não vivíamos na miséria, mas numa “suficiência” nivelada, ainda que baixa. O sistema de saúde e de ensino era acessível a todos apesar dos privilégios dos ‘servidores do povo’ As filas existiam para que cada um pudesse ter o necessário, o que não é mais acessível, hoje, para a maioria”.

Segundo Danilov, para muitos, “sem dúvida abriram-se as portas para o mundo externo, mas portas blindadas foram postas entre as pessoas”. Nunca a “atomização” atingira um tal grau. Além dessas tristes constatações, não faltam, na Rússia, reflexões interessantes sobre o passado, o futuro e as possibilidades de desenvolvimento. Mas esse universo muito plural do pensamento russo é ignorado pelo Ocidente, onde só se repercutem os pontos de vista liberais ocidentalistas.

O patriotismo refigurado nutre-se, no entanto, do ressentimento da decadência, da miséria, da nova “imagem do inimigo” – o “terrorista” árabe-muçulmano – criado em conjunto com o Ocidente civilizado com o qual identifica-se. O clima não é mais de “anti-imperialismo”, mas de xenofobia “petit blanc25 ” em relação a povos ainda mais desfavorecidos, o Sul ameaçador. É paradoxal: muitos lamentam, ao mesmo tempo, a falta do espírito de amizade que reinava nas comunidades multinacionais soviéticas de operários e estudantes e deploram a criação de novas fronteiras, os entraves políticos e financeiros que afetam a liberdade de viajar, as famílias e os amigos que se deslocaram. Aceita-se o massacre dos chechenos ao sabor do filme cult dos anos 1930, Le Cirque, no qual o ator judeu Salomon Mikhoels, assassinado por Stalin, canta uma canção de ninar yiddish a uma criança negra arrancada das garras do racismo americano!

Caminho sem volta

O patriotismo refigurado nutre-se do ressentimento da decadência, da miséria, da nova “imagem do inimigo”

A nostalgia da URSS e sua reavaliação pela população não se confundem com seus diferentes usos políticos. A realidade exclui um “retorno ao sovietismo”: a liquidação do sistema social soviético, as privações, o papel do dinheiro e as pressões do mundo exterior “globalizado” atingiram um ponto em que não há mais volta. E, se as tradições de potência, burocráticas e policiais, foram reativadas por necessidades internas do poder e do controle do petróleo, o mesmo se dá no contexto internacional no qual o exemplo da militarização, da cultura securitária é estadunidense, venerado pelos novos russos.

Entre as “reabilitações”, o presidente Putin não esqueceu Pedro, o Grande, o reformador liberal autoritário Piotr Stoypine, sob Nicolau II, nem a muito atual Igreja Ortodoxa. O Kremlin tem como emblema a águia imperial bicéfala coroada. O ídolo da nova burguesia é um veado de ouro, verde como o dólar.

Quando ao casal de Vera Moukhina, empunhando ainda as ferramentas do comunismo, a novidade da sua reforma não deve assustar os liberais: quando eles estiverem novamente em pé, orgulhosos e petrificados no seu entusiasmo pelo futuro do passado, o operário e a camponesa kolkosiana deverão ser postos em um pedestal ainda maior, digno dos novos tempos. Diante de um shopping center.

(Trad.: Teresa Van Acker)

1 - A imagem do casal comunista aparecia na primeira tela dos filmes dos estúdios Mosfilm.
2 - Aniversário da “Grande Revolução Socialista de Outubro de 1917”
3 - Sobre a música de Boris Alexandrov, o hino que substituiu a Internacional e foi abandonada pela URSS em 1991, foi restabelecido pelo Duma em 8 de dezembro de 2000, com uma nova letra “patriótica” composta por Serguei Mikhalkov, que já havia escrito a do hino soviético.
4 - Andréi Koslesnikov, Izvestia, Moscou, 5 de junho e 14 de agosto de 2001.
5 - 48% dos russos vêm no fracassado golpe militar conservador e no golpe de Estado bem-sucedido de Boris Yetsin apenas um “episódio da luta pelo poder”, 31% classificam os fatos como“acontecimentos trágicos”, 10% somente uma “vitória da democracia”. Seu segundo aniversário, em 2001, não foi celebrado.
6 - Os antigos magnatas Vladimir Goussinski (mídias), refugiado na Espanha, Boris Berezovski (automóvel, petróleo, mídias, finanças do Kremlin), “refugiado político” na Grã Bretanha, Mikhail Klodorkovski (petróleo Yukos), preso.
7 - O Comissariado do povo nos Negócios do Interior (NKVD) era a polícia política no período de Stalin. Foi substituído, em 1954, pelo Comitê de Segurança do Estado (KGB), e depois, perto do final da URSS, pelo Serviço Federal da Segurança (FSB).
8 - Esta denominação é dada a grupo de homens das forças armadas, das polícias e da informação.
9 - O partido liberal União das forças de direita e a Fundação Soros promoveram uma edição do Livro Negro do Comunismo, do francês Stéphane Courtois.
10 - Ler , URSS, une société em mouvement, L’Aube, La-Tour-d’Aigues, 1988.
11 - Izvestia, 26 de março de 2002. Falava da re-abilitação, na Ucrância, da divisão SS Galitchina
12 - Ten ’Pobedy, Moscou, 2002.
13 - Nezavíssimaïa Gazeta, Moscou, 9 de novembro de 1995
14 - Ler Karine Clément, Les Ouvriers russes dans la tourmente du marché, Syllepse, Paris, 2000.
15 - Ler Pierre Lepape, “ Le goulag selon Chalamov ”, Le Monde diplomatique, dezembro de 2003
16 - Les Années vingt, éditions Verdier (Paris), que também publicam integralmente os Récits de la Kolyma (2003).
17 - Lioudmila Boulavka, une Russe dans le siécle, La Dispute, Paris, 1998.. Les Années vingt, éditions Verdier (Paris), que também publicam integralmente os Récits de la Kolyma (2003).
18 - Golosa Krest’ian, Selskaïa Rossia XX veka v krest íanskikh memuarakh, Aspekt Press, Moscou, 1996.
19 - Ler Pierre Broué Communistes contre Staline. Massacre d’une génération, Fayard, Paris, 2003.
20 - Litteraturnaüa Gazeta, Moscou, 6-12, março de 2002.
21 - Entrevista sobre seu livro Le Pingouin (Liana Levi, Paris, 2000), in “ Le matricule des anges”, www.lelibraire.com.
22 - Lioudmila Boulavka, Non Konformizm (retrato sócio-cultural do protesto operário na Rússia contemporânea), Ourss, Moscou, 2004.
23 - Osennii krizis 1998 goda: possiiskoie obchtchestvo do i posle, PNISiNP, Rosspen, Moscou, 1998.
24 - Autora, em abril 1983, do primeiro relatório oficial (e confidencial) que reconhece a crise do sistema e a necessidade de reformas profundas. Ver a tradução francesa, por Denis Paillard, em l’Alternative, Paris, nº 26, março-abril de 1984.
25 - O termo petit blanc refere-se aos colonos preocupados com seus problemas individuais, desconsiderando os problemas da colônia.


FONTE: Le Monde

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Bolívia

BOLÍVIA 400 GRAUS
O que falar sobre a situação na Bolivia?

por Paula Paschoalick

Não querendo ceder aos meus apelos íntimos de ir logo falando mal dos rebelados bolivianos, os que explodem gasodutos, que promovem arruaças, que não enfiaram o rabo entre as pernas depois do referendo que reafirmou a posição do presidente Evo Morales, fiquei puxando pela memória as matérias jornalísticas sobre a vitória de Evo no referendo, tentando contemporizar a questão.

Em uma pesquisa rápida na internet sobre a votação comprovei algo de que já suspeitava. A vitória não foi tão badalada por aqui. Dentre os dez primeiros resultados nenhum trazia a categórica lavada de Evo, que, não só reafirmou a certeza popular de que deve continuar presidente, como aumentou sua aprovação. Os 53,7% de eleitores saltaram para mais de 60% no referendo. Tudo dentro da mais absoluta democracia.

A ameaça do racionamento de gás para o Brasil é a grande vedete do noticiário, seguido pelo fantasma da guerra civil a ameaçar as regiões fronteiriças... aliás elas têm sido desculpa para tudo, que o digam os índios da reserva Raposa do Sol.

É incrível como o tom das reportagens consegue desfocar os verdadeiros responsáveis por essa ameaça, os rebelados, para a política boliviana. Não! Não é o Evo que ameaça o abastecimento, não é Evo que desrespeitou a vontade democrática, são os rebelados das classes abastadas, que em outras situações já teriam sido tachados de terroristas pela mídia gorda.

Para pontuar melhor a atual situação da Bolívia, o jornalista Marco Aurélio Weissheimer escreveu uma ilustrativa matéria, desenrolando de vez a história da expulsão do embaixador norteamericano da Bolívia, nos dando bons sinais dos porquês das notícias que nos chegam por aqui serem tão nebulosas. Confira:

A Política dos EUA na Bolívia

Os movimentos de um embaixador especialista em conflitos separatistas

Deputados bolivianos divulgam documento denunciando as articulações promovidas pelo embaixador dos Estados Unidos na Bolívia, Philip Goldberg, contra o governo de Evo Morales. Considerado um especialista em conflitos separatistas, Goldberg foi enviado a La Paz depois de chefiar a missão dos EUA no Kosovo, onde trabalhou para consolidar a separação e a independência dessa região, depois da Guerra dos Balcãs.

Quatro deputados do Movimento ao Socialismo, partido do presidente da Bolívia, Evo Morales, divulgaram um comunicado denunciando ações do governo dos Estados Unidos, por meio de seu embaixador em La Paz, Philip Goldberg, para derrubar o governo eleito do país. César Navarro, Gustavo Torrico, Gabriel Herbas e René Martinez relacionam um conjunto de fatos ocorridos nos departamentos da região leste do país que obedeceriam a uma estratégia fixada pela oposição em conjunto com o embaixador Goldberg.

Os fatos apontados pelos parlamentares bolivianos são os seguintes:

No dia 13 de outubro de 2006, os Estados Unidos enviam a Bolívia, como embaixador, Philip Goldberg, um especialista em fomentar conflitosm separatistas. Entre 1994 e 1996, foi chefe da secretaria do Departamento de Estado para assuntos da Bósnia (durante a guerra separatista dos Bálcãs).

Entre 2004 e 2006, Goldberg foi chefe da missão dos EUA em Pristina (Kosovo), onde trabalhou para consolidar a separação e a independência dessa região, marcada por uma luta que deixou milhares de mortos.

Segundo os deputados, Philip Goldberg foi enviado a Bolívia com a missão de desestabilizar o governo de Evo Morales, principalmente incentivando o separatismo das regiões orientais. Na Bolívia, depois do triunfo de Evo Morales na eleição de 18 de dezembro de 2005, os partidos tradicionais e as elites sofreram um duro golpe, Goldberg se encarregou de reorganizá-los e de construir um caminho conspirativo para desgastar o novo governo.

Plano midiático de desinformação

Goldberg organizou uma grande coordenação com empresários do leste, com donos de meios de comunicação e políticos do movimento Podemos para colocar em marcha um grande plano de desinformação com respeito à gestão de Evo Morales, tudo isso dentro do marco de uma intensificação das lutas regionais contra o Estado boliviano. Esse plano de desinformação era constituído pelos seguintes passos:

a) Mostrar que o narcotráfico estava crescendo na Bolívia;

b) Os meios de comunicação precisavam mostrar que Evo estava governando mal e que a inflação, a corrupção e o desgoverno estavam crescendo;

c) Os meios de comunicação também deviam imputar ao governo a responsabilidade pela violência no país. Começou a ser difundido aí o conceito de que "Evo dividia a Bolívia". Consolidados esses passos, Goldberg reúne-se, na primeira semana de maio,ncom Jorge Quiroga e acertam a aprovação, no Senado, do referendo revogatório.

Eles estavam convencidos que Evo Morales não conseguiria obter mais de 50% dos votos e, uma vez deslegitimado nas urnas, a oposição e os prefeitos da chamada "Meia Lua" pediriam a renúncia do presidente por "ilegítimo, mau governante e por dividir a Bolívia". No entanto, os prefeitos dos departamentos (equivalentes a governadores) não foram consultados sobre este plano e acabaram se opondo a ele, por achar que não daria certo. No dia 23 de junho, reúnem-se em Tarija e elaboram um pronunciamento escrito para rechaçar o referendo revogatório. Dias antes, em 17 de junho, Philip Goldberg viajou para os EUA, alegando uma suposta crise diplomática.

O objetivo real de sua viagem, dizem os deputados, foi definir um plano, junto a agências publicitárias, para desenvolver uma guerra suja que pudesse causar a derrota de Evo no referendo. No dia 2 de julho, Goldberg regressou a La Paz e, imediatamente, reuniu-se com cada um dos prefeitos opositores para convencê-los a aceitar o referendo. No dia 5 de julho, os prefeitos opositores anunciam que aceitam disputar o referendo.

Os donos das grandes empresas de comunicação também participaram deste plano, denunciam os parlamentares. Isso explicaria, por exemplo, porque nos principais programas políticos destes meios as pesquisas sempre apontavam Evo Morales com cerca de 49% dos votos. A tentativa de derrubada do governo pelo voto estava em marcha. Além desta campanha nos programas políticos, também foi executada uma outra no terreno da publicidade. A oposição contratou uma agência de publicidade para elaborar os primeiros spots contra Evo Morales. Ao dar-se conta que os roteiros e o dinheiro vinham dos EUA, esta agência decidiu não produzir mais os comerciais.

O Plano B do embaixador

O plano para tirar Evo do governo acabou sendo frustrado pelo resultado do referendo. O presidente se legitimou com mais de 67% dos votos e Goldberg passou então a colocar em marcha um Plano B, que incluem greves, bloqueios e ações violentas que buscariam dois resultados alternativos.

1) O conflito se generaliza e obre o leste e parte do oeste do país. A população começa a se cansar, as forças da ordem entram em ação, com muitas mortes. Neste caso, Evo teria que convocar eleições ou deixar o governo depois dos conflitos com mortes. A insistente provocação para que as forças policiais e as forças armadas atuem se encaixa neste plano.

2) Caso não ocorra o cenário anterior, a oposição contaria ainda com uma segunda possibilidade: uma vez desalojada a polícia e o Estado Nacional das regiões, em meio à violência, Goldberg oferece aos prefeitos opositores a vinda de mediadores internacionais, inclusive tropas da ONU para concretizar o separatismo dos quatro departamentos rebeldes, como fez no Kosovo.

Seguindo esse plano, Goldberg viajou a Sucre e se reuniu com a prefeita Savina Cuellar, que pediu a renúncia do presidente. No dia 21 de agosto, o embaixador encontrou-se clandestinamente com o prefeito de Santa Cruz, Rubén Costas, e com quatro congressistas norte-americanos. No dia 25 de agosto, mais uma reunião com Rubén Costas. Paralelamente, a oposição rejeitou o chamado de diálogo feito pelo governo e, no dia 24 de agosto, convocou uma greve geral. Seguindo a linha proposta por Goldberg, denunciam ainda os parlamentares do MAS, os prefeitos impuseram um plano de desgaste de médio prazo, incluindo destruição de instituições públicas e provocações à polícia e às forças armadas.

Na mesma linha golpista, em Santa Cruz e em Tarija começou-se a falar de federalismo e até de independência. Como o empresariado cruceño estava mais interessado na Feira de Santa Cruz (que deve iniciar no dia 19 de setembro) que nas greves e bloqueios, o Departamento de Estado convocou Branco Marinkovic para uma conversa nos EUA. No dia 1° de setembro, em um pequeno avião Beechcraft, matrícula C-90A, Marinkovic viajou aos Estados Unidos onde o convenceram de que o plano estava em sua trama final e que era preciso jogar-se todo nele. No dia 9 de setembro, horas depois do regresso de Marinkovic a Santa Cruz, iniciam protestos violentos, com invasão e queima de instituições públicas e novas agressões às forças armadas e à polícia.

Este é o plano golpista que está em marcha com o apoio da embaixada dos EUA, dizem os deputados. Foram essas razões, asseguram, que levaram o governo boliviano a pedir sua saída do país. Eles manifestam confiança que esse plano fracassará porque o governo de Evo Morales segue controlando o conflito, com paciência e dentro da legalidade, mantendo-o em sua dimensão regional. "A violência gerada por grupos impulsionados por este plano golpista é a forma pela qual os setores conservadores mostram sua decisão de acabar com a democracia, já que ela não serve mais aos seus interesses", concluem.

Marco Aurélio Weissheimer

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Centenário de Josué de Castro

Dia 5 de Setembro, lembrando de Josué de Castro

É no dia 5 de Setembro de 2008 que o Conselho Municipal de Segurança Alimentar de Juiz de Fora gostaria de lembrar do centenário de Josué de Castro, patrono do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Brasil – quem foi este homem?
A fome é a principal face da insegurança alimentar. Há cerca de cinqüenta anos ela é discutida como um fenômeno social e político, no Brasil. O primeiro brasileiro a analisar a fome sob este aspecto foi Josué Apolônio de Castro, nascido em 5.09.1908 em Recife, também conhecido como o homem que “destampou a panela da miséria”. Formou-se médico e no seu primeiro emprego em uma firma em Recife apontou que a doença dos trabalhadores era a fome – foi demitido e se deu conta de que o problema era social e político. A partir deste momento tornou-se membro de várias comissões e organizações que trabalhavam o problema da fome tanto no Brasil como no exterior. Foi presidente da FAO (Conselho da Organização para Alimentação Agricultura e Nutrição das Nações Unidas) de 1952 até 1956 e eleito deputado federal pelo estado de Pernambuco em 1955 e em 1959. De 1962 até 1964 foi embaixador do Brasil junto aos Órgãos das Nações Unidas em Genebra. Foi premiado por várias organizações internacionais tornando-se referência mundial no estudo do problema da fome em suas mais amplas facetas. Foi também sociólogo, antropólogo, nutrólogo, geógrafo e filósofo. Entre muitas de suas obras literárias destacam-se a “Geografia da Fome” e a “Geopolítica da Fome”, ambas traduzidas para vários idiomas e conhecidas no mundo inteiro. No livro “Geografia da Fome”, revela a problemática da escassez de alimentos, não só em quantidade, mas também em qualidade, o que ele denomina como fome oculta, dizendo:” Mais grave ainda que a fome aguda e total, devido às suas repercussões sociais e econômicas, é o fenômeno da fome crônica ou parcial, que corrói silenciosamente inúmeras populações do mundo”.
Em 1964, aos 56 anos de idade, teve seus direitos políticos cassados e exilou-se na França, onde faleceu de saudade do Brasil em 1973. Com sua afirmação: “Enquanto metade da humanidade não dorme porque não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come........” teve assim uma visão muito profética do que viria a acontecer com o mundo.
A vida de Josué de Castro foi uma grande lição de engajamento em sua própria realidade, sua própria cultura. Procurou desenvolver toda uma ciência, a partir de um fenômeno que é a manifestação do subdesenvolvimento em sua mais dura expressão: a fome. Tentou criar outra teoria explicativa para a triste realidade do subdesenvolvimento, da pobreza e da miséria. Tentou modificar a história de seu país e foi banido por isto, como tantos outros pensadores brasileiros que ousaram desvelar as causas da miséria em um país tão rico e tão desigual. É este homem que o Brasil de hoje precisa deixar de ignorar.
“De início, a fome provoca uma excitação nervosa anormal, uma extrema irritabilidade e principalmente, uma grande exaltação dos sentidos. Nesta desintegração do eu, desaparecem as atividades de auto-proteção, de controle mental e dá-se, finalmente, a perda dos escrúpulos e das inibições da ordem moral.” (Josué de Castro)
Com cerca de 100.00 habitantes do Município de Juiz de Fora vivendo em situação de insegurança alimentar não seria o momento de discutir mais profundamente o tema de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável, junto com os problemas da área da saúde, segurança pública e educação? Melhorando o acesso e propondo ações para a garantia da alimentação adequada, alcançamos com certeza a melhora em todas as outras áreas.

O COMSEA-JF tem amplo material sobre a vida e obra de Josué de Castro, filme documentário e material didático produzido pelo “projeto memória” da Fundação Banco do Brasil.

Para saber mais sobre Josué de Castro e a missão do COMSEA, entre em contato comsea@pjf.mg.gov.br e acesse http://www.josuedecastro.com.br e http://www.consea.mg.gov.br.

Bettina Koyro – COMSEA-JF
Clério Koyro – Conselheiro Estadual – CONSEA/MG e COMSEA/JF

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Simón Rodríguez

Trechos da Obra "Memórias do Fogo - Vol 2: As Caras e As Mácaras" de Eduardo Galeano; nestes, aqui expostos, fala-se sobre Simón Rodríguez, pedagogo e filósofo, e suas idéias sobre educação e a dificuldade da aceitação da mundança desta, por parte da sociedade.

1826

Chuquisaca

MALDITA SEJA A IMAGINAÇÃO CRIADORA

Simón Rodríguez, o mestre de Bolívar, regressou à América. Um quarto de século andou dom Simón do outro lado do mar: lá foi amigo dos socialistas de Paris e Londres e Genebra; trabalhou com os tipógrafos de Roma e os químicos de Viena e até ensinou as primeiras letras em um povoado de estepe russa.

Depois de longo abraço de boas-vindas, Bolívar o nomeia diretor de educação do país recém-fundado.

Com uma escola modelo em Chuquisaca, Simón Rodríguez inicia sua tarefa contra as mentiras e os medos consagrados pela tradição. Chiam as beatas, grasnam os doutores, uivam os cães do escândalo, horror: o louco Rodríguez se propõe a misturar os meninos bem-nascidos com os mestiços que até ontem à noite dormiam nas ruas. O que pretende? Quer que os orfãos o levem para o céu? Ou corrompe-os para que o acompanhem ao inferno? Nas salas de aula não se ouve o catecismo, nem latins de sacristia, nem regras de gramática, e sim o ruído de serrotes e martelos, insuportáveis aos ouvidos dos frades e leguleios educados no asco ao trabalho manual. Uma escola de putas e ladrões! Os que acreditam que o corpo é uma culpa e a mulher um enfeite, gritam aos céus: na escola de dom Simón, meninos e meninas sentam-se juntos, todos grudados; e, o cúmulo: estudam brincando.

O prefeito de Chuquisaca encabeça a campanha contra o tarado que veio corromper a moral da juventude. Pouco depois, o marechal Sucre, presidente da Bolívia, exige de Simón Rodríguez que renuncie, porque não apresentou suas contas com a devida prolixidade.



AS IDÉIAS DE SIMÓN RODRÍGUEZ

"PARA ENSINAR A PENSAR"


Fazem passar o autor por louco. Deixem que ele trasmita suas loucuras aos pais que estão por nascer.

Terá de se educar todo mundo sem distinção de raças nem cores. Não nos alucinemos: sem educação popular, não haverá verdadeira sociedade.

Instruir não é educar. Ensinem, e terão quem saíba; eduquem, e terão quem faça.

Mandar recitar de memória o que não se entende é fazer papagaios. Não se mande, em nenhum caso, uma criança fazer nada que não tenha o seu "porquê" junto. Acostumada a criança a ver sempre a razão apoiando as ordens que recebe, sentirá falta dela quando não a vir, e perguntará por ela dizendo:"Porque?" Ensinem as crianças a serem perguntadoras, para que, pedindo o porquê do que as mandam fazer, se acostumem a obedecer à razão: não à autoridade; como os limitados, nem ao costume, como os estúpidos.

Nas escolas devem estudar juntos os meninos e as meninas. Primeiro, porque assim desde criança os homens aprendam a respeitar as mulheres; e segundo, porque as mulheres aprendem a não ter medo dos homens.

Os varões devem aprender três ofícios principais: construção, carpintaria e ferraria, porque com terrass, madeiras e metais são feitas as coisas necessárias. Dar-se-á instrução e ofício às mulheres, para que não se prostituam por necessidade, nem façam do matrimônio uma especulação para garantir subsistência.

Ao que não sabe, qualquer um engana. Ao que não tem, qualquer um compra.